Manaus (AM) – Como qualquer criança criada em Parintins, Gabriela Jacaúna teve contato com o mundo do boi bumbá desde cedo. Foi no curral do Caprichoso que a dançarina de 22 anos encontrou acolhimento durante o seu processo de transição de gênero e onde ela teve um encontro que vai marcar sua história para sempre.
Lá, Gabi conheceu a defensora pública Thaysa Torres, do Polo do Baixo Amazonas da Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM), que orientou a jovem a respeito do processo de retificação do registro civil da jovem trans.
A retificação do registro de Gabi está para ser concretizada, dependendo apenas de trâmites burocráticos para ser aprovada. Com a proximidade de receber gratuitamente a nova documentação, neste Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+, ela compartilha como está sua expectativa.
“Quando pegar meu documento retificado, eu imagino que terei um mix de sensações. Na verdade, eu fico sonhando que estou agarrada com minha nova certidão, por conta de tudo que eu já passei por não ter meus documentos retificados”, diz ela, emocionada.
“Eu vou agradecer a Deus, a Nossa Senhora do Carmo e falar: ‘Meu Deus, eu consegui! Agora vamos para outra batalha porque o principal eu consegui’. Eu fico bagunçando com meus amigos: ‘Dá uma olhada (mostrando o celular), vocês se acostumem com meu novo nome, porque esse Pix aí não vai ser mas o mesmo, vai ser outro, Gabriela”, acrescenta.
Gabi diz que ter o documento retificado vai lhe trazer respaldo e melhores oportunidades. “Apesar de eu saber entrar e sair, a gente tem que ter um respaldo, sabe? Eu digo o respaldo para entrar e sair também com dignidade. A pessoa ‘vai falar você não é o que você pensa que é’. Eu vou responder: ‘não, eu sou’. São coisas assim que fazem a gente parar de sofrer”, ressalta.
A defensora Thaysa Torres conta como começou a atender Gabi. “Na Defensoria, entre outras coisas, eu cuido de registros públicos. No ano passado, uma associação LGBTQIAPN+ que é muito atuante aqui em Parintins fez uma roda de conversa para fazer um levantamento das meninas que tinham interesse em fazer a troca do nome, para mudar para um nome de acordo com o que elas se sentiam. A Gabi não estava presente nessa roda de conversa, mas ela foi mencionada”, relembra.
“E aí, por coincidência, eu fui ver um dos ensaios do boi bumbá Caprichoso e me indicaram ‘olha só, a Gabi’ – ela trabalha no corpo de dança. Daí ela saiu do ensaio, e também me indicaram para ela ‘olha, Gabi, aquela defensora pública trabalha com registros públicos, ela pode fazer essa modificação do seu nome’. Então a gente conversou, se abraçou, já fizemos o contato e, depois, iniciamos os procedimentos”, acrescenta.
Gabi precisou viajar para São Paulo. Durante a breve temporada fora de Parintins, o atendimento inicial de levantamento da documentação necessária para a modificação de registro ficou suspenso.
“No retorno, ela voltou me procurar, dizendo ‘doutora, eu preciso trocar o meu nome, eu preciso, para a minha felicidade, mais do que outra coisa, eu preciso do meu nome, preciso que as pessoas chamem pelo nome, pelo nome que eu quero, eu quero me chamar Gabriela’. Então, fizemos o atendimento dela aqui na Defensoria, indicamos quais foram os documentos, a gente também ajudou a fazer o levantamento dessa documentação e estamos buscando essa retificação, gratuita, pela via administrativa”, explica Thaysa Torres.
“Nós já demos entrada ao pedido administrativo da modificação do nome da Gabi. Como o registro dela não é daqui da cidade, mas de Manaus, tivemos que mandar para lá. E estamos acompanhando junto com o cartório. Nós aguardamos que os trâmites demorem alguns dias, mas com a expectativa que em breve ela vai estar, o quanto antes, com a certidão de nascimento dela retificada com o nome que ela se identifica”, detalha.
A defensora pública ressalta que as pessoas cisgênero (que se identificam com o gênero que foi atribuído nasceram) não compreendem a dimensão da importância da retificação.
“A última roda de conversa que a gente teve foi bem esclarecedora. Os relatos são bem esclarecedores. Imagine você, totalmente vestida de mulher, vai num consultório médico, ou vai na escola, totalmente vestida de mulher, e na hora da chamada é chamada por um nome masculino. Então é incompatível. A pessoa não se sente pertencente. Elas relatam que muitas vezes, se são chamadas por um nome de homem, elas até desistem do atendimento, desistem de estudar. Elas desistem de várias coisas porque aquele nome, o nome que é chamado, o nome do registro não corresponde ao que elas sentem”, observa.
Thaysa Torres resume a situação como “uma perda de cidadania, uma perda de direitos e uma dor”. “Dor essa que é imensurável, porque não temos como mensurar não estando na pele delas. Nós, cisgênero, não temos como mensurar a dor que é você não conseguir acessar certos serviços por conta do nome que não corresponde à sua identidade”, finaliza a defensora.
Gabi Jacaúna conta que, recentemente, estava em um estabelecimento de Parintins, quando uma funcionária a puxou pelo braço e foi agressiva, retirando-a do banheiro feminino. “Ela falou coisas absurdas, que além de eu não ter a parte íntima feminina eu não tenho direito porque no meu documento não consta que eu sou uma mulher. Era um banheiro individual, eu estava só usando o espelho. Eu disse que em nenhum momento ninguém ia me ver e eu não ia ver ninguém. Mas ela apontou e falou você não tem a parte feminina e você não tem o nome feminino. Sabe o quão doloroso isso é? Na frente tinha outras mulheres. E muitas pessoas rindo disso”, relata.
Acolhimento no boi
Gabi entrou no boi Caprichoso aos 13 anos de idade. “Minha família é contrária (torcedora do boi Garantido)”, diz. “O boi foi uma válvula de escape, uma luz e um pouco de escudo. Eu poderia ter ido por outros caminhos, mas fui para o boi. Foi uma ligação forte”, enfatiza.
Mesmo no ambiente de acolhimento do boi, ela conta que se sentia desconfortável dançando no modo masculino. “Eu só iniciei minha transição depois da pandemia”, observa. “Então, demorou. E nesse período fui muito criticada porque estava no meu gênero raiz e falavam ‘você dança muito afeminado, não vai dar certo. Mas eu já sabia o que eu queria. Eu me sentia confortável com as meninas, dançando com elas.
“Ter o meu gênero fluído para quem eu sou foi muito bom. Uma vez, antes da transição, o Erick Beltrão (coreógrafo e Pajé do Caprichoso) olhou pra mim e falou assim: ‘tu não está no lugar certo, tu vai com as meninas’. E eu, enxerida como eu sou, fui lá, dancei, comecei a dançar com as meninas”.
A jovem diz que foi muito bem acolhida pelo grupo e pelo meu boi como um todo. “Eu falo que lá no curral ninguém mexe comigo, lá é o meu berço. Muitos problemas que eu tenho assim na vida eu esqueço lá. Lá eu não vejo, como em outros lugares quando eu estou passando, o pessoal mangando, rindo de mim. Lá eu vejo o pessoal falando que eu danço bem, que sou alegre e que sou um exemplo. E eu fico muito feliz. Eu poderia estar em outros lugares fazendo outras coisas, como eu já estive, mas lá no curral eu esqueço todos os meus problemas e sem nada em troca, eles só estão me dando amor e carinho”.
“Às vezes vou andando para o curral, que fica longe da minha casa, porque lá eu me sinto maravilhosa. Eu poderia estar no mundo da prostituição, das drogas, mas não, estou lá no curral estou dançando, estou brincando estou com meus amigos. É uma coisa maravilhosa. E o boi me apresentou a doutora Thaysa. Se eu não tivesse no boi, como eu ia encontrar a doutora? Como eu ia saber que ela existe no mundo? Como eu ia saber que a Defensoria existe? Como eu ia saber? E o boi me apresentou tudo isso”, destaca.
A dançarina diz que, antes de conhecer a Defensoria Pública, não sabia que tinha direitos assegurados em lei. “Mudar de nome era uma coisa tão impossível, tão distante que eu nunca imaginei que poderia chegar até mim. Foi quando aconteceu o evento no curral e a doutora Thaysa falou assim: ‘você vai retificar seu nome. Você vai ter o seu nome social, bonitinho lá na nossa certidão’. Além da questão do nome, a Defensoria está me ajudando com outros processos e hoje eu sei mais sobre os meus direitos, exercer minha cidadania”.
Gabi diz que a Defensoria Pública é uma instituição fundamental para outras jovens trans como ela. “Hoje nós podemos conseguir muito mais! Precisamos nos unir para exercermos nossos direitos”, finaliza.